Um veto ajuizado à desagregação impaciente
Desde março de 2016 que se contam por metade dos dedos de uma mão os contextos e momentos em que concordei com o inquilino do Palácio de Belém. Neste caso (não há regra sem exceção) tendo a concordar (e em tudo, o que é ainda mais inédito) com os três fundamentos que levaram Marcelo Rebelo de Sousa a devolver o diploma à Assembleia da República.
A primeira questão que se pode colocar é se este veto presidencial significa marcar uma posição contra um processo de reversão (desagregação) da Reorganização Administrativa do Território das Freguesias implementada em 2013 (período da Troika). Não me parece. Ou, pelo menos, não o deve ser.
Recordando o texto de 30 de dezembro de 2024 (“As desagregações e a oportunidade perdida”), são vários os estudos, conceitos e teorias sobre governação e poder local que demonstram que Portugal não tem nem municípios, nem freguesias a mais. Aliás, entre os 27 Estados-membros da União Europeia, o país ocupa a 17.ª posição do “ranking” da municipalidade (número de municípios), segundo o Eurostat.
A redução de 1.168 freguesias, imposta pela Lei n.º 11-A/2013, pode ter poupado umas migalhas em senhas de presença ou vencimentos a “meio tempo” aos cofres do Estado. Mas a “régua e o esquadro cegos” dos gabinetes do Governo ou do Parlamento deixaram milhares de fregueses com menos respostas, com um défice maior de participação, com uma democracia mais distante e um poder menos próximo. Perderam o sentido de vizinhança, pertença e identidade. E muitos, principalmente no interior, já por si desestruturado e esquecido, perderam o apoio e a ajuda que encontravam sempre que necessitavam. Ao contrário dos foguetes, rolhas de champanhe e confetes que a IL lançou, o veto do Presidente da República não é a abominação (populista e extremista, à semelhança de outros contextos radicais e extremistas que se vão sentindo) do papel do Estado e da sua organização, porque o que a reorganização de 2013 colocou em causa foi o reforço da democracia, do poder de proximidade e a relação entre eleitor e eleito, a desresponsabilização das respostas sociais que cabem ao Estado e o enfraquecimento dos espaços para a cidadania.
O que Marcelo Rebelo de Sousa sustentou no veto são três aspetos que urge refletir para que a desagregação não tenha o efeito perverso de manter os erros (mesmo que opostos) de 2013: podemos juntar os dois primeiros na vertente política (a reversão da lei e a clareza do processo). Uma reorganização ou revisão da lei que fica pela metade (ou nem isso… cerca de um terço), feita em função de perceções e estados de alma das comunidades (sentimentos de exclusão, de bairrismo, de inferioridade ou superioridade local, …), mais do que por critérios sustentáveis e justificáveis, diferenciados e diferenciadores, e estruturais; e um processo decisório pouco claro e transparente, com avanços e recuos, com decisões contraditórias entre a comissão técnica e o Parlamento que em nada beneficiaram a decisão final. Com a agravante de se estar em cima de um processo eleitoral autárquico, com um calendário que em nada ajuda a uma implementação de processos com eficácia e solidez.
Mas, essencialmente, pelo terceiro fundamento: a falta de um «envolvimento das autoridades locais (e não só, acrescentaria eu) num novo modelo multinível de governança». Ou seja, reorganizar, de novo, sem que haja uma reflexão profunda, séria e necessária, sobre a governação multinível em Portugal, com alterações estruturais na regionalização, na autonomia local, nas competências dos governos locais e regionais, na lei das finanças locais, na lei eleitoral autárquica, no regime jurídico (legal, organizativo e funcional) do Poder Local e Regional em Portugal. Sem que, mais uma vez, se tenha aproveitado para promover uma verdadeira reforma da democracia local, cada vez mais carente de uma democracia participativa (ou deliberativa) que substitua o velho, gasto e obsoleto poder da democracia representativa (quase absolutista, em vários locais).
Que o veto represente um enorme passo atrás para que se possam dar dois de gigante à frente na reforma da política e democracia local e regional.