O “Joker” tomou conta de Gotham City
Isto não impediu Donald Trump, no dia da sua inauguração como 47.º presidente dos Estados Unidos, de assinar uma ordem executiva a retirar a certeza da nacionalidade americana a quem tenha nascido nos Estados Unidos.
É inconstitucional? É. Trump até reconhece que sim, e sabe que para emendar a constituição americana necessitaria de dois terços dos votos do Congresso que não tem nem vai ter, mas o que é isso perante a sua vontade indómita e determinada? Isto é apenas um exemplo do que pretende fazer ao longo dos próximos quatro anos: não deixar pedra sobre pedra.
Já nem falo daquelas taradeiras mais óbvias, como a ameaça de incorporar o Canadá nos Estados Unidos, de invadir a Groenlândia, de retomar pela força o canal do Panamá, de perseguir judicialmente e prender os adversários políticos, de impor tarifas comerciais violentas ao resto do mundo, muito graves na generalidade, brutais nos casos dos países de que ele, Trump, não gosta ou que quer chantagear para os forçar a obtemperar e consentir nas brutalidades que lhe ocorrem.
Qualquer destas coisas tem a potencialidade de contribuir fortemente para destruir o mundo em que vivemos, ou pelo menos deixá-lo muito pior, muito mais perigoso, mas é necessário que o resto do mundo reconheça uma coisa: que aquilo que o actual ocupante da Casa Branca diz que tem a intenção de fazer, tem realmente a intenção de fazer e vai fazer ou tentar fazer.
Nada disto seria grave se Trump continuasse a ser o palhaço que toda a gente achava que ele era, em 2016. Depois, para estupor do mundo, foi eleito Presidente dos Estados Unidos.
Ao cabo de quatro anos de caos e de quase destruição do sistema de regras e alianças em que o mundo ocidental vivia, perdeu as eleições, incitou a um golpe de estado, tentou impedir pela força a tomada de posse do Presidente Biden, passou quatro anos a reorganizar-se e foi reeleito, mais forte e perigoso do que nunca.
Parece o cenário improvável de um “thriller” político, mas é a realidade em que estamos mergulhados. Como num filme do Batman, o “Joker” tomou conta de Gotham City e abriu as portas das prisões para soltar toda a sorte de criminosos - 1.500 de uma só vez - que solta sobre uma América que ele descreve como “em ruínas”. Um cenário de filme, digo-vos eu, mas este filme relata eventos verdadeiros.
Já tínhamos o mundo cheio de loucos, psicopatas e psicopatas assassinos, cleptomaníacos e alguns com um pouco disso tudo e a empófia de quem quer ser tomado a sério, a comandar os destinos de boa parte da pobre humanidade; agora temos aos comandos do país mais poderoso do mundo, a maior potência económica, militar e nuclear do nosso planeta, um criminoso judicialmente condenado.
Pior do que tudo, um criminoso com a síndrome de salvador do seu país e ódio a todos os outros. Deixo aos cientistas políticos o ónus de explicar como é que isto se tornou possível, mas não posso deixar de constatar que isto foi possível porque mais de metade dos americanos achou que eleger um criminoso com laivos de psicopata, que proclama que foi salvo por Deus para salvar os EUA (de um atentado que tem tudo para parecer uma encenação), era uma boa ideia.
Estamos a falar de mais de cem milhões de eleitores que acham que as eleições de 2020 ganhas por Biden – e por ampla margem – foram roubadas, que rejubilam com a ideia de ter um “gang” de oligarcas bilionários a mandar nos EUA, e que consideram que dar cabo do mundo em que vivem é uma boa ideia e vai ser bom para eles. Mesmo com muita fé na democracia, é impossível não ficar aterrado com este resultado.
Estarmo-nos a carpir não resolve nada. Há coisas que controlamos e outras que estão fora da nossa esfera de possibilidades. Das coisas que controlamos, a primeira é definir o que é que nós, Europa, podemos fazer, não para contrariar Trump, mas para viver no mundo pós-ocidental que Trump está a ajudar a nascer; e o primeiro requisito que avulta é o de que só uma Europa mais unida e muito clara quanto aos seus objectivos pode pretender navegar o mar revolto do mundo actual.
Aquilo a que desde o fim da segunda guerra mundial chamamos “o Ocidente”, ainda existe, a União Europeia é uma realidade pujante, temos aliados e amigos em muitas partes do mundo, muita gente e muitos países que continuam a considerar que os nossos valores e o nosso modo de vida são ideais desejáveis, que um mundo de regras e regido pelo direito é muito mais desejável e habitável que um mundo regido pela força dos mais fortes, e até uma boa parte das elites americanas partilham inteiramente destes valores que contribuíram fortemente para consolidar.
Isto quer dizer que não estamos sozinhos face à tormenta e que temos de reforçar a coragem necessária para enfrentar a brutalidade, dar o exemplo e tecer alianças sólidas. Saberemos fazê-lo? É assunto para um futuro artigo.
(Artigo escrito ao abrigo do anterior Acordo Ortográfico)